Florianópolis – Você já parou para pensar em como a arquitetura e o urbanismo desempenham um papel fundamental na qualidade de vida e na interação das comunidades com o meio em que vivem? A partir de projetos como o da arquiteta Deborah Perini, feito para a conclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo, cria-se maneiras eficientes e eficazes que contribuem, sem dúvida, para o bem-estar da população. Quer entender como? Então prepara-se para conhecer algo novo e bastante ousado.
O Movere – projeto arquitetônico que envolve equipamentos esportivos como incentivadores de mobilidade – nasceu há um ano e ganhou formas expressivas e repletas de benefícios. De acordo com Deborah, a proposta do trabalho foi articular uma rede de espaços públicos conectados através de modalidades esportivas variadas e equipamentos urbanos. Além disso, uma infraestrutura adequada permite que a população não fique tão dependente do uso de veículos automotores, e passem a se deslocar de formas alternativas.
“O projeto tem o objetivo de criar envolvimento entre as pessoas para que se sintam convidadas a se deslocar nas cidades sem depender de veículos automatizados. É uma forma de valorizar os pedestres, ciclistas e todos os esportes que envolvam deslocamentos”, diz a arquiteta.
A inspiração da profissional veio principalmente de sua mãe, que já participou de competições de natação, corrida e ciclismo. “Ela tem o esporte como estilo de vida, cada fim de semana conhece uma cidade, uma serra, uma cachoeira diferente. O ciclismo proporciona isso.” Outra grande fonte de inspiração foi observando modelos que deram certo em outros países e hoje são referência em mobilidade urbana, como é o caso de Copenhage, na Dinamarca, onde é comum a população se deslocar de bicicleta, inclusive para ir ao trabalho, priorizando modais não-poluentes.
“As cidades contemporâneas têm grande influência de outros meios de locomoção, sendo estes muito valorizados”, afirma a arquiteta, que reforça: “É uma alternativa de se obter benefícios tanto particulares, melhorando sua própria qualidade de vida, quanto em âmbito ambiental, reduzindo poluentes”, pontua.
Depois de bem definidos os objetivos do Movere, elencam-se as vantagens. Uma delas é a relação com o meio ambiente, onde é possível reduzir a poluição ambiental, sonora e visual. De quebra, ainda se diminui os congestionamentos e os gastos excessivos de quem, diariamente, utiliza carro, moto ou ônibus coletivo. Tudo isso envolvendo o esporte e a atividade física. E aí, está gostando da ideia?
“Além da questão urbana, ainda é possível contribuir com a redução de doenças físicas e psicológicas, criando convívio entre pessoas, envolvimento e interação com os espaços públicos, promover novas percepções das paisagens do território e diversificar as práticas esportivas como meio de locomoção”, explica a profissional.
Florianópolis foi a escolhida
A escolha pela capital de Santa Catarina não foi aleatória. Pelo contrário. Foram levantados pontos cruciais relacionados à mobilidade urbana que precisam ser solucionados para garantir melhores condições aos mais de 500 mil habitantes que hoje vivem no continente.
Historicamente, segundo Deborah, as cidades se desenvolveram em torno do uso de automóveis, principalmente após a década de 50, com o “boom”das aquisições dos veículos automotores. Porém “junto com o desenvolvimento, veio problemas de dispersão e segregação urbana, que prejudicaram grande parte da população”, comenta Deborah.
Os modais concentraram-se principalmente nos centros e como resultado, muitas pessoas ficam desprovidas de mobilidade pública urbana, ficando refém de automóvel ou moto, pois não há infraestrutura adequada para vir até o centro a pé ou de bicicleta tendo que se adaptar às distâncias com o inseparável companheiro movido a gasolina.
Quem não possuía carro ou moto seguia de transporte coletivo, assim como se vê nos dias atuais. A minoria percorria os longos quilômetros até o local de trabalho a pé. Hoje, esse número ainda é pequeno e o que se vê são as intermináveis filas de carros nos horários de pico, com o som das buzinas e a fumaça dos canos de escape.
E nada melhor que os números para mostrar tudo isso que estamos falando. Ao todo, 72% do transporte mundial é via rodoviário. O Brasil é o quinto país do mundo com mais acidentes fatais de trânsito, com mais de 1 milhão de vítimas.O Estado de Santa Catarina é o maior detentor da frota automobilística do país, em que 74% dos catarinenses possuem ao menos um automóvel.
Chegando em Florianópolis observam-se números preocupantes. De acordo com Deborah, 33% da população local leva mais de meia hora por dia para se deslocar ao trabalho. Ao todo, 48% das viagens são feitas por transporte automatizado, o maior índice das metrópoles brasileiras.
“Outro fator que deve ser levado em conta é o índice de dispersão urbana, que é quando as pessoas têm dificuldade em se locomover no território. Em Florianópolis este índice é de 51, maior que São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro”, lamenta a arquiteta.
“A ideia é influenciar esportes aéreos, aquáticos e terrestres que são realizados através de deslocamentos. Resultado de tudo isso? Cidades mais caminháveis, humanas, seguras e saudáveis, com espaços públicos, áreas verdes preservadas, parques e pontos de apoio.”
Mas, agora você deve estar se perguntando de que forma tudo isso vai ocorrer. Calma! Agora vem a parte técnica do projeto, que promete surpreender.
Conheça os hubs esportivos
Tecnicamente falando, o Movere é um exemplo de que é possível pensar em desenvolvimento e ao mesmo tempo cuidar do meio ambiente e das pessoas. Isso porque os aspectos naturais já existentes no local em que funcionarão os equipamentos esportivos aliados à mobilidade serão valorizados.
Deborah mapeou parques, unidades de conservação, edificações esportivas existentes, e eventos esportivos que já ocorrem na ilha anualmente, como o Iron Man, Maratona internacional de Florianópolis e outros eventos esportivos que atraem atletas de todo o mundo. Florianópolis é a segunda capital mais fisicamente ativa do país. Todos estes fatores culturais determinaram a dinâmica do projeto.
Fazer uma leitura completa da cidade de Florianópolis foi essencial para o sucesso do trabalho e seu resultado final. A arquiteta percebeu que todos os bairros – embora uns tenham mais infraestrutura que outros – carecem de atenção e cuidado no quesito mobilidade urbana.
“Foi preciso fazer uma leitura das dinâmicas territoriais da cidade. Entender de onde as pessoas saem, onde vão e porquê. A partir disso, cheguei a quatro pontos modais de alto índice de deslocamento diário, sendo o primeiro a rodoviária e o TICEN, o segundo a UFSC e a Eletrosul, o terceiro o centro administrativo, e o quarto o aeroporto, com seus entornos correspondentes”, explica a profissional.
Esses “nós” de deslocamentos geram grande movimentação de pessoas na ilha, e a grande maioria é dependente de veículos automatizados. “Não há segurança hoje em dia para, por exemplo, ir trabalhar de bicicleta. Não há ciclovias e quando há falta iluminação e sinalização”, afirma.
Além disso, a grande maioria das pessoas de desloca do centro para o norte, onde há duas opções. Pela rodovia SC 401, que há mais linhas de ônibus disponíveis e duplicação. No entanto, o trecho é altamente congestionado. Ou pela rodovia SC 406 onde a infraestrutura é bem inferior e há um déficit em linhas de transporte coletivo.
Partindo para a região Sul da cidade há uma urbanização subdesenvolvida, predomina a alta dependência de carros já que não há terminais integrados de ônibus e as ciclovias são praticamente inexistentes.
“Todas as pessoas devem por direito poder deslocar-se no território e ter um caminho digno e provido de infraestrutura adequada para se locomover, sem depender exclusivamente de veículo automotor […]. Portanto,o conceito de movimento do projeto seriam os caminhos que podem ser percorridos para se chegar a outros pontos dos territórios e se conectar aos hubs esportivos”, pontua Deborah.
O projeto quer atingir pessoas de todas as classes, idades e condições físicas, oferecendo uma forma limpa e saudável de locomoção. “Até mesmo para quem tem mobilidade reduzida como idosos, crianças ou portadores de necessidades especiais. É para todo mundo”, garante.
O conceito principal da proposta de Deborah envolve “hubs esportivos”, que são definidos como a parte central de algo. Ou seja, estes espaços darão apoio e suporte para as viagens. Haverá oficinas, banheiros públicos, chuveiros, guarda-volumes, bebedouros, lounge para eventos, etc. A ideia não é fazer as pessoas permanecerem nos hubs, mas sim que eles deem o suporte para as viagens.
Detalhes
Em todo o circuito, a iluminação pública pode ser dimerizada através de sensores de movimento no intuito de economizar energia, que será toda em LED. Ainda, câmeras de segurança, wi-fi e painéis digitais com informações de aplicativos e empresas parceiras do projeto compõem o circuito.
Sem contar ainda na proposta sustentável do Hub, que conta com energia fotovoltaica, reaproveitamento da água da chuva, jardins filtrantes para tratamento do esgoto gerado pelos banheiros públicos e o cuidado com a natureza, através de paisagismo do parque. Serão ao total 15 Hubs esportivos nesta modalidade espalhados em toda a ilha, gerando emprego e renda com lojas comerciais voltadas aos esportes, duas quadras esportivas, salas de workshop, bowl de skate, e muita vegetação!
Legislação
Outro ponto muito importante de todo o trabalho é, sem dúvida, estar de acordo com a legislação vigente para garantir a viabilização do projeto. Tendo em vista que é necessária muita verba para consolidar este tipo de intervenção urbana, e também ampliar muitas vias, ou ate mesmo criar novas vias, foi necessário entender muitas leis e também o estatuto da cidade.
Algumas leis abordadas foram: Operação Urbana Consorciada; IPTU progressivo no tempo; Lei do Melhoramento Público; Outorga Onerosa; Contribuição de Melhorias, e Transferência no Direito de Construir.
Além disso, as parcerias público-privadas, também foram estabelecidas no Movere, a fim de encontrar empresas e eventos que se interessem em patrocinar e incentivar o projeto.
Empreendedorismo em projetos arquitetônicos esportivos
E não pense que a arquiteta parou por aí. Concomitantemente com o trabalho técnico – extremamente bem elaborado e detalhado, por sinal -, Deborah aflorou ainda um lado diferente como profissional: o do empreendedorismo.
Primeiramente, todo bom projeto precisa ser representado de alguma maneira que o identifique logo de cara, seja um símbolo, uma nomenclatura, um slogan.Sendo assim, Deborah elaborou uma logo que trouxe ostraços e a identidade do projeto, originado a marca “Movere”.
A Movere além de ser o nome dado ao projeto urbano, será também o nome do aplicativo de aparelho móvel que as pessoas instalarão em seus smartphones, para verem detalhes do circuito, eventos esportivos da cidade, previsão do tempo, altimetria do percurso e etc. Decathlon, Centauro, Nike, Vans, Shimano, Speedo, Strava e outros poderiam se interessar em participar. Tudo seria uma grande plataforma esportiva. Uma marca, que estaria dia a dia conectada a vida das pessoas.
Cidade para as pessoas
Pensar em arquitetura não deve ser algo pequeno, para uma restrita parte da população. Devemos pensar em grande escala, em um benefício majoritariamente amplo e a longo prazo, por exemplo.
Projetos arquitetônicos sempre se consolidam mais no espaço quando são bem embasados por meio de um bom projeto urbano, pois estes analisam o território por completo e não deixam rupturas, brechas para o mau uso do edifício.
Hoje em dia a preocupação maior é ambiental e financeira, todos querem reduzir custos. O cidadão deve ter o direito de ir e vir, direito a espaços públicos dignos, e infraestrutura de qualidade. “Isso é o mínimo que os governantes deveriam nos proporcionar em âmbito urbano”, diz a profissional.
Os esportes escolhidos neste projeto (aéreos, aquáticos e terrestres), juntamente com infraestrutura de qualidade, iluminação pública, mobiliário urbano, totens informativos farão com que as pessoas se sintam mais convidadas a saírem nas ruas e praticar algum esporte. Assim, elas não vão sentir medo em passar em áreas escuras, não se sentirão desprovidas de uma oficina caso o skate estrague, não vão sentir-se estranhas por estar indo trabalhar de patinete, nem perdidas por atravessar a ilha de caiaque.
Além disso, não vão achar mais tão perigoso voar de asa-delta, pois muito mais pessoas estão voando, e pessoas atraem pessoas. E isso vai tomando proporções cada vez maiores e o espírito de equipe vai crescendo e influenciando outras pessoas. É assim que devemos pensar em arquitetura, não apenas como um edifício, mas sim como um modo de vida. É preciso entender as necessidades e criar cidades para pessoas e não para os carros.
Fonte: Construir.aí | Marina Kessler
Fotos: Construir.aí | Fabricio Wazilewski
– Para conhecer mais o trabalho da arquiteta Deborah Perini é só clicar aqui.